A borda
- Marcus Bruzzo
- 10 de dez. de 2024
- 4 min de leitura
O choque de duas semiosferas e a dissolução dos sentidos.

Dia 18 de Outubro de 2024, inicia-se um pequeno alvoroço em uma travessa sem saída no centro de São Paulo. Mais especificamente no centro do bairro da Liberdade, próximo à Sé. Caminhões e equipes aparamentadas fecham via e começam a retirar as lanternas temáticas japonesas de uma rua no bairro da Liberdade, conhecido por ser o centro da cultura japonesa na cidade. A rua se chama Rua dos Aflitos. Uma chinatown como tantas outras pelo mundo, que se estabeleceu com a grande quantidade de imigrantes japoneses que vieram pra essa região ao longo do século XX.
As luminárias, chamadas "lanternas Suzurant", parecem ocupar o espaço de centralidade simbólica para a definição da cultura orientalizada de bairros como esses. Por nenhum outro motivo se não apura semiótica, elas que se tornaram os alvos da operação. O nome dessa rua se deve ao Cemitério dos Aflitos, que foi fundado em 1775, e ocupava originalmente o espaço da quadra da Rua dos Aflitos até a rua Galvão Bueno, a principal rua do Bairro.

Aberto no dia 3 de outubro de 1775, época em que ocorreu o primeiro sepultamento, este cemitério era reservado apenas para o sepultamento de indigentes, para os escravos que não pertenciam à Irmandade do Rosário (que possuía seu próprio cemitério) e para os condenados à morte na forca, os chamados supliciados.
A Capela dos Aflitos está ridiculamente espremida entre prédios utilitaristas, um crime visual. É o local onde milhares de pessoas escravizadas foram enterradas, e sobre seus ossos, hoje em dia, há diversas construções; padarias, franquias japonesas de cafés instagramáveis, frenéticos labirintos com mercados de cosméticos e lojas de ítens de anime, originais ou cópias. Muitas cópias.
O grande volume de imigrantes orientais instalados no local, o transformou em um espaço de comércio e residências entremeadas. Na segunda metade do XX, juntaram-se outros asiáticos como coreanos e chineses configurando a mistura cultural que engendra, necessariamente, uma chinatown como todas no mundo. As americanas possuem uma estética asiática inventada por americanos; questiono-me sobre as nossas. Uma profusão de oportunidades comerciais de parede, lojas, mercados, galerias, mirando sobretudo jovens e expondo novidades plásticas importadas, no passeio tomado por artesanatos, ambulantes, furtos de celulares e comidas de rua. Um festival.
Fins de semana, aos milhares, as ruas são tomadas por turistas ou endêmicos vagando entre as lojas, pescando oportunidades, aproveitando os cafés da região, e quiçá, comprando um bonequinho de anime japonês em cópia fidedigna chinesa vendida por um coreano. A liberdade efervesce sobre um cemitério de escravizados torturados, mal-julgados e mortos sem direitos. Vala comum. Semiosferas se chocam. Esse é o contexto.
Quando tratamos da visualidade do espaço urbano, tratamos da "intrusão do imaginário sobre o espaço físico", como diria Cornelius Castoriadis. Os traços no terreno, os prédios e seus tipos arquitetônicos, suas funções e relações. O imaginário econômico que, por oportunidade ou necessidade, definem os pontos de contato e relações entre cada espaço, rendem a configuração final daquilo que vemos na cidade; são cristalizações de uma cosmovisão bastante ampla, mas de alguma forma, definível.
Yuri Lotman sintetizou tudo isso no termo "semiosfera", que pode compreendida primariamente como um "espaço de relações", e que esse espaço se sustenta "uno" por conta de uma certa coesão, dada por códigos, que estabelecem a lógica das relações entre os seus elementos internos. As semiosferas (que mais são um framework, instrumento de pesquisa cultural que fatos físicos) contêm essa limitação; necessitam de coesão interna. O fim dessa coesão, começa a criar áreas de sobreposição que são, por sua natureza, áreas extremamente conflitivas. Nestes pontos as semiosferas se diluem e criam-se as bordas. Zonas de sobreposição de sentidos, onde códigos de duas ou mais semiosferas competem e se dissolvem violentamente; não há congruência ou previsibilidade nas relações entre esses mundos culturais distintos, como toda fronteira. Fronteiras são zonas de conflito.
As camadas sedimentadas da vida e da morte e sobrepõem.
A história do bairro da liberdade fez com que ele se tornasse uma violenta sobreposição de sistemas simbólicos completamente distintos. O casal de amantes otakus no passeio de domingo, pouco ou nada sabe sobre as camadas históricas do lugar. Compram um smoothie importado sobre um cemitério de escravizados, as camadas sedimentadas da vida e da morte e sobrepõem. É preciso pensarmos sobre modalidades de violências. Porque existe um tipo muito característico de violência que decorre de uma violência anterior, mas essa segunda é silenciosa e duradoura. Os vínculos humanos que se estabelecem com a morte são profundos e se tornam importantes unidades mediadoras de condutas gerais humanas, incluindo a ética. Mais violento do que a morte de um ente querido, é passarem uma autoestrada por cima dele; a indiferença tomaria completamente a centralidade da angústia originalmente focada na perda. Como o ousa?
O desdém para com o passado - que é tão característico da cultura brasileira -, como uma mecânica de sobrepôs as dores com cinismo, de desespero pelo novo, é um salto olhando pra cima que não assegura a base. O ethos nacional.
As lanternas foram retiradas da Rua dos Aflitos porque são elementos estranhos aos códigos do cemitério, logo abaixo. Como que se uma franquia do McDonald's se fizesse valer do espaço disponível e inútil de um túmulo pra ampliar o drive-thru. Ou espoliassem as lápides pra construir um shopping novo. A remoção das lanternas não é um cuidado estético, é a comprovação de uma borda entre duas semiosferas distintas e violentamente sobrepostas, e nesse caso específico, nos lembra de que a vida, se possível hoje, se assenta nos ombros dos nossos mortos. Não por princípios metafísicos - afinal são ossos -, mas por nós mesmos, devemos olhar nos olhos dos mortos pra entendermos quem somos; jamais passar o asfalto e adornar o paço sem nem mesmo a breve menção: divirta-se, mas não se esqueça, este não é um local de diversão.
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