A necessidade da oposição
- Marcus Bruzzo
- 30 de nov. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 23 de jan.

Precisamos superar essa crença infantil de que a resolução de todos os conflitos se dê apenas através da obliteração dos opostos.
Quando abordei esse tema no vídeo (abaixo), tinha em mente a necessidade latente de aumento da complexidade das relações políticas no nosso país. Mas durante o processo me ocorreu a iluminação de que amadurecer o debate político não se trata simplesmente de um método para a solução de conflitos, mas da manutenção do próprio modelo democrático.
Mas vamos por partes. Muitos são os que criticam a oposição, e por isso fazer, executam bem o papel fundamental de oposição; criticar. Mas temos aí dois tipos distintos. Alguns são daqueles que levantam aspectos pontuais para crítica, ou melhor, sabem justificar exatamente porque criticam algo dos políticos ou pessoas de sua oposição política. Estes são raros infelizmente. Outros são daqueles que entendem que a oposição em si própria é diagnóstico de um erro anterior, ou de um problema que deva ser resolvido. Acreditam que se existe oposição é sinal de que a sua posição (a inquestionavelmente correta) não está assegurada. Estes ambicionei comunicar diretamente.
A democracia é um problema, mas não se preocupe, isso não é privilégio de nossos tempos. A democracia é um conceito fugidio que encontrou diversas dificuldades históricas para sua implementação. Sócrates foi morto democraticamente, e reclama disso no Apologia, por Platão. Muitas vezes, a democracia acabou descambando para regime políticos que se faziam valer do discurso democrático para instaurar autocracias - a esses, desde os trabalhos de Aristóteles em seu "Política", chama-se de "demagogos". Em sua origem, demagogia representa a inversão entre os objetivos e os discursos. Pense assim, o demagogo tem justamente como objetivo a sua popularidade, por isso os discursos populistas são os centro do seu governo e não quaisquer projetos. Isso porque os discursos são os alicerces sobre os quais se assentam todos os planos de manutenção do seu próprio poder. Os objetivos são, portanto, os discursos.
demagogia representa a inversão entre os objetivos e os discursos.
O populismo extremista de direita, em pleno crescimento entre as maiores democracias do mundo, tem essa característica bastante peculiar; ele não funcionaria bem em sistemas que não fossem democráticos. Os totalitarismos que vimos na história recente são de uma natureza completamente diferente, e já e retornaremos a eles, mas o populismo apenas encontra substância pra sua completa realização dentro de uma democracia. Não seria isso completamente contraditório? Isso decorre da natureza do populismo ter como estratégia de poder, toda sua ação voltada ao discurso "popularizado". O que nos permite dizer que, toda vez que um político estrutura a sua forma de poder através de ações como: "falar o que o povo quer ouvir", o "honestão", o "mito" (em alguns aspectos do "lacre" também), ele está orientando sua política a uma "engenharia do discurso" que só funciona de fato se representar as expectativas populares; daí porque essa modalidade extremista é fruto direto da democracia. Mas jamais se joga o projeto fora por conta de maus exemplos, ou o bebê com a água da banheira. Democracia é o limite, ainda que seja de fato apenas uma utopia jamais completamente realizada, é uma utopia digna do cargo que ocupa e devemos lutar por sua manutenção. O populismo deve ser compreendido portanto como um colateral da democracia.
Agora, esses discursos populistas são da natureza da obliteração dos opostos, que comuniquei no vídeo, como um dos principais erros dos nossos tempos. Mas como assim? Não posso criticar o meu oponente político? Não posso querer que um corrupto seja preso? Claro que pode! E deve! Residindo justamente nisso o fato de que a oposição deva ser mantida, porque sem oposição, não existe julgamento. Julgamento é uma possibilidade inscrita na oposição de valores. Sem oposição, não se extinguem os crimes, apenas a possibilidade de disputa sobre comceitos de justiça.
Chantal Mouffe em On The Political (Routledge) trouxe uma iluminação muito valiosa sobre isso. Para ela, a condição democrática é fundamentalmente definida pelo que ela chama de agonismo. O agonismo político pode ser definido por uma condição ambígua - mesmo contraditória - de que, para que a democracia se sustente como tal, o conflito deva ser permanente. Isso não advoga pelo conflito em si, muito pelo contrário dele, apenas assume que o silêncio não seja sinal de paz; na história humana não houve sequer um segundo de silêncio. E quando houve silêncio foi sinal de que estávamos sob alguma forma terrível de ditadura.
na história humana não houve sequer um segundo de silêncio
Crimes são e serão punidos como devem ser. Ideias, entretanto, não ocupam necessariamente o espaço de punição. Como havia um advogado dizendo esses dias, "é terrível mas não é punível". Quando entramos o âmbito da queima de ideias, à lá Fahrenheit 451, estamos flertando com o fim da democracia. E se você vive no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa ou no mundo, você já deve ter notado que esses discursos têm se tornado cada vez mais comuns, e que embasam, muitas vezes, as ações violentas das pessoas que acreditam que o discurso oposto deva ser obliterado. por que o discurso populista tem como pano de fundo a obliteração do oposto, deve ser investigado, muito provavelmente, nas bases simplistas da crença no mundo em binômios: bom e mau, herói e violão, salvo ou perdido, tudo ou nada. A simplificação binária tem raízes que merecem um trabalho separado para análise.
Mouffe indica que essa força motriz da oposição e da intriga, tão comuns na história humana, não devam ser cinicamente ignoradas, porque jamais desapareceriam, talvez tornassem-se ainda sintomas de coisas piores. Mas que a intriga, que é inegavelmente uma força que move, é deve ser canalizada, refletida para outra direção, através de mecanismos jurídicos, técnicos e filosóficos, para que rendam sínteses produtivas. Não seria a história, - assim como toda a evolução conquanto possamos acreditar em alguma -, resultado justamente de uma dialética entre oposições? Não seria justamente, como foi para Hegel, que algo positivo apenas poderia surgir como um terceiro passo, como a síntese de duas negações anteriores? A negação da negação.
Talvez tenhamos que evoluir, ou amadurecer, para um estágio civilizacional onde o conflito seja tomado de forma frontal, e canalizado como força criativa, mas isso jamais acontecerá enquanto permitirmos que se tome a oposição como um erro. O erro pode estar no conteúdo da posição assumida, e as discussões devem ser colocadas no conteúdo, nas premissas, mas não na existência da oposição. Enquanto os discursos populistas permanecerem, seguiremos vendo posturas antidemocráticas como tentativas de golpe de Estado, bombas ou ameaças políticas, com apoio popular, e sob subterfúgio do mal por um bem maior, da mitopoética dos “heróis” contra os “vilões”.
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