Falamos "tecnologia" o tempo todo. Mas o que isso realmente significa?
- Marcus Bruzzo
- 20 de set. de 2024
- 9 min de leitura
Atualizado: 23 de jan.
Você está lendo este texto agora, por meio digital, em um local cercado de aparelhos tecnológicos, pertencendo a um mundo ordenado por vias de troca de informações e mediação econômica da realidade também orquestradas por aparatos tecnológicos. Seu cotidiano, seu trabalho, sua função, todos atrelados à tecnologia.
Todos decerto poderíamos concordar que estamos em uma realidade social definida e mediada pela tecnologia; entretanto, o que não conseguiremos concordar com tanta facilidade é sobre a definição desta própria tecnologia. Afinal, o que é isso?
Considere que Tecnologia é um conjunto de atos simbólicos, destinados à realização de fins icônicos. Isso porque a estruturação discursiva dos textos sociais, quaisquer textos, segue regras de hierarquização diretamente relacionadas aos ímpetos intelectuais de suas épocas. Tecnologia é assim, apenas mais um texto social como qualquer outro, pela sua qualidade necessariamente discursiva e contextual. Tecnologia é um conjunto histórico e conserva em si muitas outras esferas além de sua aplicação prática ou ferramental. Acima de tudo, tecnologia não é material, não se trata de equipamentos ou gadgets, mas de uma episteme, uma conceituação, e o princípio de seus valores se encontra em sua configuração social, histórica e necessariamente política.
Para a primeira questão, temos os trabalhos singulares de Heidegger em The Question Concerning Technology de 1977, por abordarem com uma aproximação histórica e etimológica que reitera a aderência do termo “tecnologia” a “processo”, narratividade, discurso e tão fundamentalmente, ritual. Nesta medida faz-se constar que a tecnologia é entendida como um derivado direto de um modo mais amplo do discurso social e não apenas como um elemento autônomo com funções lógicas e práticas ou ferramentais.
Tecnologia é diferente de aparelho tecnológico. Tecnologia é um “pensar tecnológico” que isola e relaciona elementos de forma a constituirem uma versão de mundo social. Esta versão corresponde a uma imagem ainda anterior desde próprio mundo.
Tecnologia é processo. A tecnologia carrega em si a ideia de revelação, ela desvela algo, considerando sua forma epistêmica como apresentada por Heidegger, que se refere como “revelação”. (Heidegger, 1977, p.13) rememorando que em tempos anteriores a Platão, os termos techne e episteme eram conectados, sendo termos relacionados com“conhecer” em seu sentido mais amplo.
Tecnologia não é o aparelho;
Tecnologia significa uma ação;
Tecnologia tem origem na extensão do corpo;
As ações tecnológicas revelam um modo de pensar;
Porém, desde Aristóteles em Ética (Livro VI,capítulos 3 e 4) techne e episteme se diferenciam, e techne recebe a incumbência de designar a manifestação da imagem-conceito em prática, atualmente chamado “projeto” ou “modelo”,cuja aplicação idealizada determina todos os processos de criação das ferramentas tecnológicas, ou seja, acaba sendo de fato uma revelação, diz Heidegger, como o conceito revelado (idem). O conceito se materializa pela techne, ou, a techne está para o conceito como a materialidade está para a ideologia.
Diferentemente da redução da tecnologia à sua materialidade, com suporte da interpretação heideggeriana, a tecnologia tanto serve como ela é o produto e a produtora de modos de pensar e modos de relação com a realidade, encontrados na cerne de um ambiente intelectual de sociedade humana. No passeio etimológico, Heidegger ressalta em Ser e o Tempo, ainda, que pragmata era o termo utilizado para designar Objeto, e que o termo é indiscernível de praxis como processo (poiesis) (Heidegger, 2001, p.97, SZ: 68) e a partir daí, ele opta por se referir à objetividade (res) da tecnologia, ou seja, sua manifestação como os aparelhos que conhecemos, como “equipamento”.
Ao assumirmos esta perspectiva, nos afastamos tanto dos promoteicos quanto dos fáusticos. A tecnologia não sendo considerada como suporte físico, mas como ideologia, imagem de mundo, é um processo de organização dos fluxos sociais que foi embebido historicamente de valor de verificação da realidade, resultando em aparelhos ou equipamentos, através dos quais lidamos, mensuramos, projetamos e reformulamos a realidade. Ela deixa de ser a vilã e a mocinha da história, não somos mais vitimas nem predadores da tecnologia, se considerarmos os aparelhos que nos cercam como vestígios de algo anterior e mais profundo. Isso é um alívio e uma angústia. Alívio pela perda da iminência de um ataque direto às liberdades ou formas de vida social que temos agora por meio dos aparelhos. O chip implantado não assusta mais do que qualquer objeto plástico implantado no corpo humano. A angústia se dá porque a perda do caráter místico do chip implantado move a atenção à configuração social na qual a vida carece de um chip implantado, revelando um ideário anterior e mais profundo, no qual o corpo humano deve estar conectado aos meios e processos de quantificação e troca de mercadorias dentro de uma humanidade industrial.
O próximo passo é a esfera do discurso social e político da tecnologia.
Marcuse reconhece na tecnologia uma ideologia modeladora, uma conduta instrumental e contribui ao diálogo através da elucidação dos processos econômicos inbuídos no afastamento do ser humano das técnicas de criação dos próprios aparelhos (alienação) (Abromeit, 2011, p.288).
Nesta monta, o indivíduo social, habitante de um espaço civilizatório profundamente modelado pelos critérios de organização e fluxos econômicos, depende e vive destes aparatos como ferramentas pelas quais organiza sua vida. Computadores, celulares, carros, GPS, telas, interfaces, trocas de mensagens. Entretanto, este mesmo indivíduo não tem quaisquer conhecimentos acerca do funcionamento destes aparelhos. A condição industrial se realiza em um nível que impossibilita que um único indivíduo possa conhecer todos os processos de construção de qualquer aparelho tecnológico. Contudo, ainda em Marcuse desenha uma condição pós-capitalista em que haveria a habilidade de se unir tecnologia e arte, e que a tecnologia não fosse distanciada e dominada pelos sistemas produtivos. (ibid. p.296) o que em última instância se perfila à perspectiva utópica que posiciona o aparato tecnológico como potencial redentor, ou fator organizador de combates ideológicos sociais.
Similar a Heidegger entretanto, na formulação de Marcuse, tecnologia se diferencia de instrumento, sendo a totalidade de instrumentos e equipamentos que caracterizam nossa época (Marcuse, 2004, p.41). Dentro da máxima das sociedades liberalistas, a tecnologia (ideologia tecnológica, não instrumentos) como observada durante o século XX teve uma função substancial na organização do mundo baseado na ideia de mercado de competição, onde o “player” vencedor, ou seja, a empresa que domina o mercado não é retratada como aquela que atinge maior qualidade em seus métodos produtivos, mas sim aquela que é a maior produtora em menos tempo, já que
“o princípio de eficiência competitiva favorece empresas com os equipamentos mais altamente mecanizados e racionalizados. Poder tecnológico tende à concentração de poder econômico”. (Marcuse, 2004, p.43 — nossa tradução)
A tecnologia se revela como ideologia, ou discursividade no sentido pré- ôntico, na organização do mundo-mercado do qual “somos”. Esta relação se aproxima da condição analítica de uma tecnologia como ideologia estruturadora do mundo pós-guerra, operando a completa virtualização desta guerra. O que antes era uma gerra com local e destruição físicos, toma uma nova face, virtualizada e omnipresente. A guerra ocupa todos os espaços e espaço nenhum. A guerra fria é fria, silenciosa e está posta. Agora todos participamos do seu terreno, vide a constante ocorrência de roubo e tráfico de informações de consumidores entre nações e empresas. Destarte, eficiência, em Marcuse é um signo compreendido como produção-versus-tempo. A eficiência aqui
“é considerada como unificação e simplificação integral, já que destina-se à remoção de todo o “lixo”, evitando todos os desvios, ela se destina à coordenação radical”. (ibid, p.44)
Nestas linhas, adjuntas ao esforço da escola crítica, revela-se a origem da compreensão da racionalidade instrumental como a via de entrada da redução tecnicista ao modo de organização do pensamento humano, que não é para Horkheimer, necessariamente, uma condição opressiva, mas achatadora de capacidades. (Rush, 2004, p.29) Onde para Adorno, esta instauração da racionalidade técnica como único paradigma é o mal habitando o coração da civilização moderna (ibid, p.135).
A crítica reservada aqui se direciona desta forma à recorrente suspeita naïf de uma sujeição humana aos mandos da máquina em seus ritmos produtivos.
A sujeição — que pode conotar imposição — deve ser substituída por pertencimento ao modo de pensar baseado no mito da tecnologia. Não somos vítimas, mas agentes estruturadores e reprodutores.
Busca-se uma centralidade do poder, a quem apontar e atacar como estrutura, quando o discurso desterritorializado pertence a todos e pode surgir das periferias, sem lugar, sem dimensão. O método científico atual, presente desde os grandes centros de referência até a “tecnologia” contida no conhecimento popular possuem em comum um fator: a expectativa da tecnologia ser um método de criar instrumentos, onde estes instrumentos sejam formas de mediação entre consciência e realidade e sirvam primordialmente de revelação. O cálculo técnico de um computador é verdade inquestionável, enquanto esquecemos as premissas anteriores ao emprego deste computador. A quais respostas os aparelhos respondem? De que forma não estão estas perguntas direcionadas à capacidade e limitação das respostas possíveis? Procura-se o que se acredita não poder encontrar?
Substituindo controle por pertencimento ao modo de pensar baseado no mito da tecnologia, não há mais uma “massa passiva”, mas indivíduos ativos no processo de instauração do mundo instrumentalizado que em estudos de ideologia, pertence às mentes dos operadores de máquinas antes das próprias máquinas. Nas palavras de Baudrillard, o discurso totalitário em sua ideologia pertence a todos e pode surgir das maiorias silenciosas, “a massa e a mídia são um único processo”(Baudrillard, 1983, p.44).
Quando considerado o afastamento aristotélico dos conceitos de episteme e tehcne supracitado, relacionando subssequentemente techne à dimensão material do fenômeno ideológico da tecnologia (equipamentos ou aparatos), qualquer análise sociológica que se aproxime da tecnologia apenas como soma conjuntural dos equipamentos, formando “redes” cuja estruturação seja mais ou menos significativa, frente à complexidade das interações humanas não mediadas, se limita à análise dos meios (media) como “origem de” e não “reflexos da” esfera político-econômica, e passa ao largo de problematizar as projeções ideológicas que apenas cedem terreno para manifestações tais como os aparelhos da tecnologia (computadores, redes sociais, realidades virtuais, inteligência artificial.)
Os aparelhos são falhos, seus conjuntos infinitos de componentes ligados em linhas são realizações materiais de um percurso de transformações que almejam alcançar um ideal que precede - e indifere- de todo o suporte físico conseguido. Todo computador está aquém do ideal que move sua própria formulação. Toda televisão é a realização instrumental, industrial e mercadológica do sonho da verdadeira tele-visão, não tendo sido concebida em seu ideal como aparelho, conjuntos de circuitos, mas como habilidade de ver o distante, para o qual, a televisão é a forma mais viável em dado momento histórico. Por isso não se pode procurar apenas na infraestrutura as respostas destas ambições anteriores.
Consciência e tecnologia, conquanto sejam relacionados com certo aspecto de causalidade, devem ser reconhecidos como fenômenos puramente biológicos, no sentido em que Tim Ingold atribui, para que possamos compreender a gênese das implicações em conceitos que colocam a consciência acima da matéria, e que mitificam a tecnologia comorevelação. Desta forma, Ingold completa:
“Garantido que ferramentas tornem-se artefatos por virtude de suas relações com um conjunto de ideias governando sua construção e uso, localizado na consciência de seus feitores a totalidade destas ideias, constitui o que convencionalmente chamamos de tecnologia.” (Ingold, 1986, p.352–354)
Como Sahlins o diz “uma tecnologia não é compreendida por suas qualidades físicas apenas”(6)
“Ela [a tecnologia] é primeiramente e de forma mais relevante, um corpus de conhecimento transmitido por instrução. Um conjunto de instrumentos, considerados separadamente não fazem a tecnologia; ao contrário, eles expressam a tecnologia apenas no sentido de que são postos em relação aos seus feitores. E desde que manufatura seja a aplicação de conhecimento tecnológico, fica claro que o Homo Faber (homem feitor de ferramentas) e Homo Sapiens (homem que sabe) não são se não um mesmo indivíduo. (7)”(Idem — nossa tradução)
Ingold nos lembra que pela perspectiva biológica histórica, a tecnologia é a representação da maestria das mãos sobre os pés. Humanos apenas estão na natureza da cintura para baixo. Neste contexto, Ingold recupera de Grundisse por Marx a passagem em que as ferramentas são consideradas os órgãos do cérebro humano, criados pela mão humana; o poder do conhecimento objetificado. (Ingold, 2011, p.46). As ferramentas, ainda neste contexto, representam a materialização do imaginário humano, entretanto, com a devida ressalva de que os processos de mecanização pós industrial afastou o ser humano da maestria de suas ferramentas. Ingold faz a ressalva de que as ferramentas sejam absolutamente imprecisas quando observadas de perto (idem, p.62) restando de maquínico real, apenas a projeção mental do homem que ajusta os relógios constantemente.
Tecnologia é um elemento que precede o status material, reside na ideologia, no discurso como forma de ordenação de significação do mundo social, e é apenas mais uma manifestação dos textos sociais, com seus próprios códigos organizadores de elementos internos, sua própria história e política. Os aparatos de tecnologia são considerados instrumentos de revelação — na perspectiva aristotélica e heideggeriana — na condição de carregarem sobre si uma aura de desconexão e independência dos preceitos humanos considerados falhos, o que atribui ao instrumento sua forma reveladora, a mensuração correta e inquestionável. Entretanto é na premissa de sua constituição, nos motivos de posicionamento de cada elemento de sua composição física ou programática, que se ocultam os ideais históricos aos quais se deve sua utilização. A tecnologia é, neste sentido, a revelação do deus, do ethos, do pathos, do cosmos de uma época, e por coincidência, não raro se apresenta no mercado como se apresenta o místico no altar de um templo.
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Baudrillard, Jean. In the shadow of the silent majorities… Or the end of social and otheressays. Translated by Paul Floss. Semiotext(e) Columbia University. New York . 1983
Flusser, Vilém. O Universo das Imagens Técnicas. Elogio da Superficialidade. Annablume. São Paulo. 2008
Heidegger, Martin. Being and Time. Translated by John Macquarrie and Edward Robinson. Routledge, New York. 2001
______ The Question Concerning Technology and Other Essays. GARLAND PUBLISHING, INC. N York & London. 1977
RUSH, Fred. Teoria Crítica 2a edição. Tradução Beatriz Katinsky, Regina Andrés Rebollo. Aparecida São Paulo. Ideias & Letras. 2008.
Que reflexão interessante. Obrigado!