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Pessimismo é um erro

Atualizado: 20 de mar.

Ninguém leva artigos de festa na bolsa pela hipótese de ter que festejar. 

Arte de Guenter Zimmermann

Há pouco espaço neste mundo para o otimismo, sejamos francos. Ou não? As notícias certamente não são nada apaziguadoras, se começarmos por elas, por não dizer que talvez sejam elas próprias a origem de grande parte dos mal-estares existenciais do nosso tempo. Guerras prenunciadas por guerras anteriores, porque conflitos se retroalimentam, uma pandemia mundial recém superada, mas que deixa ainda marcas profundas nas lembranças das pessoas que perderam entes queridos, e como se não bastasse, a todos os outros, instaurou a sensação de que pandemias globais - uma possibilidade até então desinteressada à imaginação popular - sejam uma condição de iminência permanente com a qual, agora, devemos passar a viver considerando. 


Colapsos de economias, guerras tarifárias, pós-verdade, Fake News, revisionismo histórico, movimentos anti-ciência. Não fosse só a geopolítica um cenário complexo e instável, na vida mais cotidiana se somam os índices de criminalidade permanentemente presentes como possibilidades de encontro no passeio público, e todas questões que não auxiliam em nada para que tenhamos uma perspectiva positiva, ou otimista, sobre o possível desfecho das coisas. 


Não resta outra saída. O pessimismo parece ser uma conclusão necessariamente derivada da reflexão. Quanto mais soubermos sobre as coisas, mais pessimistas seremos. Soa como um nexo causal. Uma vez adquirida a capacidade reflexiva, ela nos traz novas dimensões de dor por capacidade de antecipação dos problemas; agora sei o que pode acontecer, e o que pode acontecer não é nada bom. Nunca falamos sobre aqueles que conseguem antecipar situações como alguém que se prepara para algo que será bom, já notou isso? O indivíduo precavido é aquele que está pronto para o fato de que, tudo dará errado em algum momento, basta esperar e estar pronto. Ninguém leva artigos de festa na bolsa para hipótese de ter que festejar. 


Mais popularmente, com a capacidade de síntese da criatividade coletiva, fala-se simplesmente que “a ignorância é uma benção”. Mas isso - no piso de fábrica do mundo, na reflexão corriqueira, como em uma criação open source a milhares de mentes - reflete exatamente quais foram as considerações do pessimista mais famoso na história, Arthur Schopenhauer. A conclusão para ele era exatamente essa: o pessimismo seria uma derivação lógica da lucidez. Quanto mais lúcido, e supostamente, detentor de mais clara e analítica observação instruída do mundo, maior o grau de pessimismo está fadado o indivíduo. Na verdade, Schopenhauer não considerava a ignorância uma benção. Justiça seja feita. A única diferença para ele seria que o indivíduo ignorante não saberia a origem dos seus sofrimentos. A notícia ruim, entretanto, é que aquele que sabe a origem, jamais teria como resolver essa condição.


pessimismo é a constatação de uma condição absolutamente insuperável da natureza das coisas externas a você


E aqui alcançamos o ponto mais importante dessa reflexão. O conceito de vontade como condição universal. Por absurdo que isso pareça. Primeiro, é preciso entender que o pessimismo é um produto da razão para Schopenhauer, uma vez que esse conceito aparece em seu pensamento como diagnóstico de uma condição anterior. Além disso, o pessimismo não poderia simplesmente ser tomado como culpa do indivíduo que vê o mundo, algo que esteja nele, ou dependa dele. Não se trata de algo que a pessoa pudesse fazer, à moda estoica, de controle das suas sensações, para que se sentisse de forma diferente frente às angústias que a vida apresenta. Sua visão pessoal não dá origem ao pessimismo, muito pelo contrário, o pessimismo é a constatação de uma condição absolutamente insuperável da natureza das coisas externas a você, à qual a sua visão lúcida e instruída apenas diagnostica que não há saídas. O pessimismo é então um sintoma, mais do que uma causa de problemas, ou o problema em si. Uma condição existencial, produto do encontro entre a razão e o mundo. 


A saída 


No século XXI temos boas razões para não crermos mais na possibilidade, ainda que remota, de uma força universal chamada "vontade". 


Compreendendo essa questão inerentemente relacionada às origens do idealismo (corrente filosófica) que subsiste na filosofia de Schopenhauer, podemos começar a ver alguns fachos de luz nesse mundo obscuro e tenebroso pintado pelo filósofo. Para ele, o problema real que acarreta toda a série de reações da consciência frente à sua realidade em forma de pessimismo, é uma força natural disposta no mundo, nas coisas e nas relações, que condenam tudo a um conjunto de ações que por sua natureza são insustentáveis. 


Trata-se aqui de uma concepção metafísica que injeta no universo uma lógica mística de autodestruição, ou melhor, de autofagia, consumo de si próprio, até a extinção de qualquer equilíbrio. A essa força que ele dá o nome de vontade, que figura no título do trabalho mais famoso de seu curso intelectual: O mundo como vontade e representação. A vontade aqui, não é simples vontade de um indivíduo que deseja algo. Nos motores místicos que agem no universo de Schopenhauer, a vontade figura no campo das forças, coisas que movem as coisas. Ele complementa sucintamente quando diz, por exemplo, que “a vontade tornada objeto é a representação”, ou seja, a força tornada tangível, algo que vemos, tocamos, sentimos, já é uma forma de representação; a vontade é anterior ainda. Veja essas passagens escritas por Schopenhauer:


“o corpo é condição de conhecimento da minha vontade”
“Desse ponto de vista, as partes do corpo têm de corresponder perfeitamente às principais solicitações pelas quais a vontade se manifesta, têm de ser a sua expressão visível. Dentes, esôfago, canal intestinal são a fome objetivada. Os genitais são o impulso sexual objetivado”

O projeto de Schopenhauer na verdade ambicionava colocar a vontade como força motriz de tudo, dentro e fora do indivíduo. Obviamente ele se refere às vontades individuais, como uma pulsão pré-reflexiva que te move, e chega a acusar Platão e Kant, a quem denomina serem os "maiores filósofos do Ocidente", do grave erro de acreditarem que a ideia, o “a priori”, fosse a primeira estrutura do espírito humano, aquela mais profunda e anterior a tudo mais, a geradora de forças que movem, porque segundo ele, ainda antes das ideias, existe a tal da vontade. As ideias seriam, até elas próprias, já meras representações. O título que diz que o mundo é organizado em vontade representação nunca ficou mais claro do que isso. Essa passagem de Vontade e Representação, por exemplo, exclui qualquer dúvida. Ele segue dizendo:


porém, a reflexão continuada o levará a reconhecer que também a força que vegeta e palpita na planta, sim, a força que forma o cristal, que gira a agulha magnética para o pólo norte, [...] que aparece nas afinidades eletivas dos materiais como atração e repulsão, sim, a própria gravidade que atua poderosamente em toda matéria, atraindo a pedra para a terra e a terra para o sol, - tudo isso é diferente apenas no fenômeno, mas conforme sua essência em si é para se reconhecer como aquilo conhecido imediatamente de maneira tão íntima e melhor que qualquer outra coisa e que, ali onde aparece do modo mais nítido, chama-se VONTADE.

Essa força irredutível é justamente o calcanhar de Aquiles na filosofia Schopenhaueriana, a premissa oculta, e portanto a mais frágil do seu edifício intelectual. Deve estar superada qualquer metafísica dessa categoria transcendental, de coisas místicas que reagem o universo, que no fim, são alegorias de sentimentos humanos projetados na lógica das coisas, acaba o pessimismo como possibilidade por uma razão simples. 


Se superarmos o animismo de Schopenhauer, a vontade deixa de ser uma força da natureza que impele as relações autodestrutivas, retoma uma configuração muito mais humana, muito mais histórica e política; fontes muito mais tangíveis por essa razão. E se, nessa nova configuração, transferimos aos seres humanos a responsabilidade das condições que eles próprios vivem, a vontade deixa de ser algo místico, algo transcendental, e se reposiciona como produto das veleidades humanas, das ambições e vícios, dos desejos mais impronunciáveis e disputas egoicas. As pontas se unem em um ouroboros deste ponto com o início do texto: as guerras, a fome, as inseguranças, as catástrofes, não são a causa do pessimismo como como único diagnóstico lúcido possível, mas o contrário: nossas crenças transcendentais em naturezas universais a quem culpamos, são elas mesmas, as forças motrizes da destruição. 


A transferência da culpabilidade das consequências materiais às causas imateriais gera um mundo que nos faz crer, em reflexão, que a natureza das coisas faz do pessimismo condição inescapável. 


A boa notícia do dia é então a conclusão mais racional, mas de uma racionalidade atualizada ao nosso século, diferente daquela que Schopenhauer ainda herdava da escolástica. A conclusão de que projetamos deuses e demônios com face humana aos quais cedemos com pessimismo e desilusão frente a suas leis deterministas. O destino ou condição existencial fadados ao sofrimento, a vontade como força avassaladora que rege o universo, são no fim, também, criações nossas. 


Após a brevíssima janela de existência em que nossa espécie esteve em um minúsculo planeta, em algum canto gélido do universo, esse universo jamais terá sequer notado o que é a "vontade" pela qual o acusamos, e pela qual nos sentimos na obrigação de sermos pessimistas.


--


SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação: Tomo I. Tradução de Jair Barboza. 2. ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015.




TL;DR

  • O pessimismo surge como consequência lógica da lucidez, pois conhecer o mundo é reconhecer sua tragédia.

  • Schopenhauer vê o pessimismo como um diagnóstico inevitável da razão frente à vontade universal.

  • A vontade, para Schopenhauer, não é desejo humano, mas uma força cega e autodestrutiva da natureza.

  • Superar a visão metafísica de Schopenhauer nos liberta do pessimismo inevitável.

  • O pessimismo pode ser um erro de perspectiva: atribuímos às forças externas o que, na verdade, é humano.


 

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2 comentários


Linda escrita e magnífica interpretação das ideias do Schopenhauer, o querido "pessimista", mas que na verdade ele sabia muito bem o mundo como é. Abraços de Moçambique

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Marcus Bruzzo
Marcus Bruzzo
21 de mar.
Respondendo a

Muito grato pela contribuição!

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