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Tempo, evolução, progresso e Henri Bergson

Atualizado: 23 de jan.

A crítica de Bergson ao tempo linear e cumulativo que sustenta a imagem de progresso.


foto de henri bergson sentado em seu escritório
Henri Bergson

A ambição de traçar uma história humana clara e objetiva tem criado as mais variadas maneiras de interpretação e recriação de eventos. A história não é senão uma recriação, e qualquer esforço neste sentido encontrará na sua tecedura um viés epistemológico que oculta em si valiosas dicas sobre o modus de sua época. Cada recriação transparece no discurso um geist, uma condição histórica, social, cultural e portanto política.


Nesta empreitada, a recriação histórica moderna tem como berço personagens importantes como Darwin, Boas, Lamark em seus esforços enciclopédicos de organização dos processos naturais, e é justamente neste empreendimento, que sustenta uma lógica por trás dos processos da natureza, que surgirão os aspectos-base da constituição do tempo moderno, contendo sua essência de progresso e continuidade linear. Em outras ocasiões, retornaremos sobre o tema do tempo, mas de forma a considerar todas as outras faces que ele adquiriu em momentos históricos diferentes do nosso. Por ora, nos atendo aos esforços contidos na tentativa de explicação dos processos naturais, teremos uma clara imagem das vias pelas quais se estabeleceram as noções que hoje dominam a compreensão popular de fluxo temporal e progressão.


Aqui notamos o valor da proposição bergsoniana do tempo, com sua voz academicamente dissonante elevando os processos e relacionamentos entre indivíduos e espécie (ontogênico e filogênico) a uma complexidade que passaria no teste da história, evitando os erros dos fatalistas que por muito tempo sustentaram a Necessidade à frente da Potencialidade ou da Contingência, como Hegel. Aqui, tomamos termos já elencados em trabalhos tão primevos quanto Plutarco (45 d.C).


Nesta esteira, é chocante como Henri Bergson (1859–1941) não esteja mais no epicentro das discussões sociais sobre o tempo, sobre evolução e criatividade.


O tempo passou para Bergson e embora tenha tido muita influência em sua vida acadêmica, rendendo nobres premiações por estilística e inovação, no âmbito das pesquisas e publicações nacionais, Bergson inegavelmente acabou relegado ao ostracismo. As contribuições de Bergson são fundamentais para se evitar alguns vícios metodológicos acadêmicos tão comuns. Vamos dividir esta análise nas duas grandes áreas em que Bergson trafegou, o evolucionismo e o tempo.


Comecemos pela redução do processo criativo de replicação de vida, ou adaptacionismo, a uma perspectiva pretensiosamente Evolucionista, linear, fatalista, que o próprio Darwin, imbuído em um universo cultural violentamente cristianizado, conservava dúvidas fundamentais. A incerteza de Darwin pairava no coração de suas teorias biológicas recém-nascidas, de uma maneira crítica e transparente que não se encontra mais em Boas ou Lamarck por exemplo, a citar alguns dos maiores nomes desta grande área. A incerteza originária de tantas divergências criativas na investigação do mundo biológico está por exemplo expressa de forma latente em Darwin, seguindo a publicação de sua Magnum Opus, A origem das espécies(1859). Logo após a publicação de sua obra, Darwin envia uma carta a Asa Gray onde revela incapacidade de “pensar que o mundo que vemos é o resultado de chance; e ainda, eu não consigo olhar cada coisa separada como um resultado de Design… Eu estou, e devo para sempre permanecer, em uma lama desesperançosa.” (Essai sur les données immédiates de la conscience, 1889). Darwin estava perdido entre duas hipóteses de causa aos efeitos que registrou; mecanicismo e fatalismo.


A adaptação generational de Darwin, chamada por ele de “descida com modificação” inspirou toda sorte de reinterpretações e apropriações de termos que andaram de mãos dadas com a ideologia de “progresso” da época, e coube como uma luva a estes critérios; afinal, agora, podia-se dizer que através de um método científico renomado e reconhecido, se fazia viável a formulação de união entre Contingência e Necessidade, isto é, a conexão entre determinado estado de mundo e uma força demiúrgica ainda mística no interior de cada delicada manobra na natureza das coisas.


O discurso religioso, que atacado pelo evolucionismo, viu nesta lógica a hipótese de uma adaptação com finalidade. Spencer, ainda antes de Darwin, havia trocado o termo “evolução” por “progresso”, demonstrando que a lei do progresso biológico é a lei do progresso universal. Em seu Primeiros Princípios, e Sobre Evolução Social, Spencer relaciona evolução com progresso pela sua aposta metodológica na perspectiva de que evolução


“é definível como uma mudança da homogeneidade incoerente à heterogeneidade coerente”.

A ordenação medíocre se supera atingindo a desordenarão complexa como aumento de valor vital e portanto, sendo possível discernir qualitativamente de um estágio inferior. Atualmente, é latente que a complexidade de interação dos organismos não é discernível de modo qualitativo, mas relacional, em fluxo, sendo acidental e criativo, vide Ingold, Hoffmeyer, Sebeok em biologia. Ainda no lado do discurso religioso, há em Lamarck e sua linhagem evolutiva o anúncio de que quando uma espécie atinge o topo de seu desenvolvimento outra se insere no processo formando uma corrente contínua e eterna formando uma figura semelhante a uma escada rolante, inclusive porque nela, nenhuma espécie tem em si própria a força para determinar sua evolução. Neste ponto se insere o conceito de necessidade sobre a simples chance, ou seja, o Design ao qual Darwin se referia.


Do lado não religioso, encontraram-se variações teóricas que, frente à modificação das criaturas vivas através de gerações, baseada em cruzamento (muito mais tarde compreendida por combinação genética), se fez compreender através da proposição do que caberia em um Naturalismo mecanicista, isto é, atribuindo à forma dos animais as suas finalidades mecânicas. Ainda, é fundamental compreender que a chance aqui descrita não era a alteração criativa ou acidental das espécies, mas a combinação booleana de supostos elementos mecânicos cujas alterações formariam mutações correspondentes e diretas.


Segundo esta visão, o bico do beija-flor não é senão um instrumento para que possa sugar o néctar adequadamente e contribuir na linha de produção do mundo natural com uma função desempenhada com o mínimo erro. O que dizer do Crossbill, pássaro cuja espécie vem se modificando com relativa adequação à espessura da casca de seus alimentos resultando em um bico cruzado?


Diagramas do esqueleto do pássaro Crossbill
Crossbill

A perspectiva determinista transparecida em Boas, por exemplo, reduz a sucessão criativa de instantes a um fluxo constante e progressivo de todas as vidas biológicas, ao qual todas estão sujeitas ao contrário de serem protagonistas.


Por ambos os lados, encontramos a determinação finalista de forma que se encontra com enorme recorrência nos processos de maturação da análise científica, em que uma ciência que se debruça sobre o que consegue fazer notações, ou seja, os fenômenos ou efeitos, e cobre a vala das causas de especulações que são, invariavelmente, embebidas das concepções morais da época que esta ciência nasceu. Ainda deve-se considerar a descoberta do RNA, e o desenvolvimento de seu estudo desde a segunda metade do século XIX até os dias atuais. O conjunto combinacional (digital) de constituição dos seres biológicos não é apenas fundamentado a partir do DNA, mas de mutações epigenéticas, ocorridas ao longo da vida de um único indivíduo e sem necessidade de cruzamento, sendo passível de transferência genética (geracional). Embora amplamente difundido atualmente, este conhecimento ainda margeia algumas discussões e permanece obscuro ao público geral.


Henri Bergson já havia lançado luz a esta direção em seus trabalhos cujas análises são praticamente de cunho abdutivas, carecendo de demonstração de evidências falseáveis. Entretanto, seu livro L’Évolution créatrive de 1907, publicado em inglês em 1911 sob título Creative Evolution impõe uma perspectiva de adaptacionismo criativo que parte da metáfora de um artista.


Bergson indica que a criação artística não é a execução pronta de um conceito pré-estabelecido na mente do artista, de forma que ela reproduza ipso facto, mas o “pintar” é ele mesmo um processo de contínua recriação da obra e do próprio artista. Assim, a duração da consciência do artista é a duração da criação da obra. A obra, nesta perspectiva é absolutamente inversa às proposições anteriores, tanto a mecanicista quanto a fatalista. Opõe a mecanicista porque considera que não se conclui um próximo estágio a partir do relacionamento de elementos dispostos no estágio anterior, mas que algo pode acontecer para além da combinação. Epistemologicamente podemos dizer que a contingência não limita a possibilidade. Da mesma forma, opõe a perspectiva fatalista no momento em que introduz um elemento dialético de criação e criatura, que excede a simples realização de uma forma de mundo apenas. Epistemologicamente pode-se dizer que a necessidade (única possibilidade) não guiou o processo rumo a uma única contingência.


Coloca-se desta forma um quadro à frente do tempo de desenvolvimento que seja uma mancha complexa e abstrata, da soma de ocorrências biológicas criativas e acidentais, unidas em um momento uno, ao invés da famosa linha do tempo da concepção cristã. Bergson afirma que a origem das modificações está no “ímpeto interior” dos seres agentes, sem deixar expresso que há conhecimento ou qualquer tipo de direcionamento a um progresso desejado, mas que o processo de modificação do todo, que altera os seres inseridos neste todo, parte da soma das ações de todos estes entes vivos. Nós criamos o mundo que cria humanos. A perspectiva natural, desta forma, é a materialização de um quadro sem fim, borrado e distorcido, e não estático, ao invés de um “túnel do tempo” com eventos distintos e marcados por datas.


Ao olharmos para a história, temos esta certeza, olhamos para um amontoado de tinta de alguns milhares de anos, e não para um rastro ou uma trilha acessível. Por estas vias Yuri Lotman afirmava que o historiador está fadado a lidar com textos culturais e nenhum fato verificável, simplesmente porque a narrativa do fato histórico acaba por ser, necessariamente, a recriação eterna de narrativas convencionais sobre um dado evento, agora, apenas visível em seus indícios já soterrados e narrativas textuais fundamentalmente políticas.


Assim, a arte é o “processo da consciência de um artista” sintetizado em um estado fixo em imagem, porém extraordinariamente dinâmico em composição. Anteriormente, Bergson em sua tese de doutoramento Essai sur les données immédiates de la conscience (Time and free will), datado de 1880, se debruça integralmente na tentativa de desmembrar os absurdos contidos na concepção de tempo como processo mecânico, enaltecendo uma série de paradoxos provindos desta formulação. Para Bergson, a consideração do tempo como algo existente, um elemento do universo, é a consideração de que tudo que se move no universo possui movimento apenas pela união de infinitos momentos subsequentes. A união destes momentos é alcançada apenas pela mente humana que, dotada de memória, considera instantes anteriores ao instante atual, determinando o movimento. Desta construção, ele afirma, segundo o seu paradoxo da inerência de momentos subsequentes, com a morte do último ser humano seria impossível determinar se algo ainda se move, pela ausência de uma consciência que meça tempo e posição cuja síntese seria o “mover-se”. Outro ponto, ressalta Bergson, é o de que


“se o tempo, como a consciência reflexiva aponta, é um meio onde o estado consciente forma uma série de momentos particulares, a partir dos quais se pode contar, e nossa noção de número se conclui em se espalhar no espaço tudo que pode ser diretamente contato, no sentido de ser algo que fazemos distinções e contamos, não é nada além de espaço”.


O espaço existe independentemente do seu conteúdo como Kant postulava?


Se a resposta tender à negativa, é bastante provável que o tempo também não exista independente dos elementos que nele se contém em variação. Bergson acerta no diagnóstico, o que veio a ser concluído nas equações de Einstein e a teoria geral da relatividade em 1915; o tempo é um elemento infinitamente mais humano do que gostariam os cientistas positivistas.


Bergson iniciara um caminho sem volta, cujo valor de compreensão tem poder de reorganização de todo um processo civilizatório amplamente permeado da conceituação mítica do tempo cristão, linear e significativo, induzindo ao mito do progresso e todas as implicações lógicas da linha do tempo, como processo, particularização de estados, direção, evolução, necessidade ou “salvação”.


Nas palavras de Gilberto Dupas, talvez fosse melhor permanecermos com Merleau Ponty, quando disse que


”caminhamos, e não progredimos; Transformar caminhada em progresso seria assim uma mera elaboração ideológica das elites.”

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